2008: O ANO DO ESCANGALHAMENTO DAS INSTITUIÇÕES DO ESTADO (2)
Por MARI ALKATIRI - (II Parte)
A Questão dos “Peticionários” e do Alfredo Reinado
Falávamos das questões de que o governo Xanana se vangloria e apresenta como sucessos da sua governação. Uma delas é a questão dos “peticionários”. Para quem não sabe, “peticionários” são um grupo de ex-soldados que abandonaram os quartéis em princípios de 2006, alegando serem vítimas de práticas de discriminação no seio das F-FDTL (Falintil-Forças de Defesa de Timor-Leste).
Por MARI ALKATIRI - (II Parte)
A Questão dos “Peticionários” e do Alfredo Reinado
Falávamos das questões de que o governo Xanana se vangloria e apresenta como sucessos da sua governação. Uma delas é a questão dos “peticionários”. Para quem não sabe, “peticionários” são um grupo de ex-soldados que abandonaram os quartéis em princípios de 2006, alegando serem vítimas de práticas de discriminação no seio das F-FDTL (Falintil-Forças de Defesa de Timor-Leste).
Tudo começou em Fevereiro de 2006, quando um grupo de cerca de cento e cinquenta soldados (oficiais, sargentos e praças) da chamada zona ocidental “Loro Monu” de Timor-Leste decidiram abandonar os quartéis com reivindicações de que vinham sendo alvos de práticas de discriminação levadas a cabo por alguns oficiais do Comando das F-FDTL originários dos Distritos mais a leste do país. Este grupo de soldados apresentou um abaixo-assinado endereçado ao Presidente da República sob a forma de uma “petição”. Daí passaram a ser conhecidos pelo nome de “peticionários” .
Xanana, como Presidente da República, foi logo o primeiro a ser solicitado para tratar desta questão e fê-la prontamente, usando de todo o seu ascendente, exigindo o regresso aos quartéis dos mesmos soldados e aceitando a criação de uma Comissão das F-FDTL para investigar o caso. Mais disse que, se os mesmos não regressassem, seriam todos expulsos da Instituição (vide relatório da Comissão de Notáveis).
Na verdade, após a decisão feita pelo então Presidente da República, só parte dos “peticionários” regressou aos quartéis. Mesmo com estes não se chegou a acordo sobre a sua sujeição ao processo de investigação dirigida pela Comissão das F-FDTL. Poucos dias depois, voltaram a abandonar o quartel, trazendo consigo mais e mais colegas, totalizando um número de quinhentos e noventa e três (593), equivalente a quarenta por cento (40%) dos efectivos das F-FDTL.
No vai e vem sem fim de acusações e desmentidos, de exigência do Comando das F-FDTL para que os “peticionários” se apresentassem para investigação e da recusa destes de o fazer, o Primeiro-Ministro propôs a criação da Comissão de Notáveis com representantes indicados pelos diferentes órgãos de soberania, pela sociedade civil e pela Igreja Católica. A Comissão foi criada com o objectivo de apurar a verdade dos factos sobre as alegações de discriminação apresentadas pelos peticionários e de recomendar soluções.
No entanto, as recusas de serem sujeitos à investigação mantiveram-se, tornando o trabalho da Comissão muito difícil de se realizarem. A situação piorou ainda quando o Comando das F-FDTL decidiu expulsar todos os “peticionários” das F-FDTL. Posteriormente, a 23 de Março de 2006, o Presidente da República Xanana Gusmão, de regresso de uma visita a Portugal, endereçou uma mensagem à Nação onde critica, de uma forma acutilante, a decisão do Comando das F-FDTL. Critica, igualmente, o Ministro da Defesa. Usando do sarcasmo e do humor negro como armas, entendidos por cada um à sua maneira, uns à letra e outros fazendo a leitura nas entre-linhas, resgata as alegações de discriminação dos “peticionários”, incorpora-as num novo conceito de divisão do país onde o Leste passaria a ser constituido por três Distritos e o Oeste por dez, com inicio em Manatuto e fim em Oé-Cusse. Neste mesmo dia, rebenta efectivamente o conflito Leste/Oeste com o escalar da violência nos diferentes bairros de Dili.
Esta inesperada divisão do país rapidamente encontrou terreno fértil na PNTL (Polícia Nacional de Timor-Leste), com o Comando deliberadamente a discriminar os elementos dos três distritos mais a Leste do país o que conduziu posteriormente à implosão da instituição. Milhares de cidadãos viram-se forçados a abandonar as suas casas e bairros a procura de maior segurança. Apareceram, assim, os campos de deslocados internos.
Em relação a questão dos “peticionários”, nem sempre o Presidente da República e o Primeiro-Ministro se mostraram de acordo relativamente ao sentido a dar para o encontro de uma saída, facto que tornou evidente a existência de conflitos institucionais entre o Presidente e o Primeiro-Ministro, as F-FDTL e a PNTL.
Ficaram, deste modo, as Forças de Defesa com menos quarenta por cento dos seus efectivos, a Polícia dividida, a Liderança política em conflito, as F-FDTL e a PNTL em choque, o País partido em dois, política e socialmente, os cidadãos sem qualquer garantia de segurança. E tudo começou com o aparecimento dos “peticionários” mas, tornou-se mais incontrolável após a declaração do Presidente da República de 23 de Março de 2006. Por isso, a solução desta questão era, e é, essencial para garantir o retorno à vida normal, à unidade nacional, à paz e à estabilidade, condições sine qua nom para a reconstrução e o desenvolvimento do país.
Mas a solução deve ter em consideração as raízes do problema raízes que são de natureza eminentemente política e institucional.
Vejamos então como o governo Xanana tratou e resolveu a questão:
Durante cerca de dois anos, fomos assistindo a diálogos de toda a ordem e a todos os níveis em busca de uma solução para o fenómeno, sem qualquer sucesso. Na verdade, continuava o grupo dos “peticionários” a reivindicar a demissão dos principais Comandantes das F-FDTL e exigir o reingresso dos cerca de seiscentos elementos seus às Forças. Por outro lado, o Comando das Forças tornou sempre claro que nunca aceitaria o regresso dos “peticionários” às Forças, exigindo que justiça fosse feita, considerando os mesmos como desertores. Perante duas posições tão antagónicas, reconhecemos que, encontrar uma solução de compromisso era extremamente difícil, senão mesmo, impossível. A acrescentar a tudo isto apareceu o fenómeno Alfredo Reinado (verdadeiramente a reinar) e o seu grupo. Apresentava-se como um grupo que nada tinha a ver com os “peticionários”. Dizia o Alfredo no início, i é, quando a 3 de Maio de 2006 decidiu (ou foi ordenado?) abandonar o Quartel da Polícia Militar rumo às montanhas, que a sua atitude tinha a ver com o facto de as F-FDTL terem sido chamadas pelo Primeiro Ministro a intervir no dia 28 e 29 de Abril de 2006 e que desta intervenção teria havido “massacre” de sessenta “peticionários” na zona de Taci Tolo. (A ser verdade então houve ressurreição em massa para posteriormente receberem dinheiro. Nenhum “peticionário” faltou). Coincidentemente, o Presidente da República Xanana Gusmão também parecia querer acreditar na versão do massacre. A Comissão Internacional de Investigação chamada para investigar a crise, no seu relatório, tornou claro que “não houve massacre”.
Na verdade, Alfredo gradualmente se foi afirmando como Líder visível e operacional, rosto mediático de todos os elementos que abandonaram os quartéis das F-FDTL, incluindo os “peticionários” e que tinham como principal objectivo a demissão e a prisão do Primeiro Ministro. Afirmava publicamente ainda continuar a pertencer às Forças e que só obedeceria ao comando do Comandante Supremo, a saber, o Presidente da República. Esta situação prolongou-se até (onze) 11 de Fevereiro de 2008.
Já com Dr. Ramos-Horta como Presidente da República e Xanana como PM de facto também a novela do Alfredo Reinado continuou com o Presidente da República a defender a continuação da via do diálogo e Xanana cada vez menos convencido da eficácia da via escolhida.
Quando Alfredo começou a sentir o tempo a avançar contra ele, em Novembro de 2007 decidiu fazer declarações, afirmando estar pronto a denunciar os seus verdadeiros mandantes. Garantiu que tudo fez, e tudo aquilo que fez, desde o abandono do quartel até a data da declaração, fê-lo sob as ordens de outros e que estaria pronto para publicamente apresentar os seus nomes. Verdade ou não, isto foi dito e amplamente divulgado. Alfredo teria arriscado demais?
A oportunidade de ouro surgiu precisamente em Fevereiro/Março de 2008 com a morte do Alfredo no ataque à residência do Presidente da República e com o atentado à vida do próprio PR. Um ataque misterioso e que surgiu precisamente no momento em o Presidente da Republica falava de uma Lei de amnistia e de um acordo global entre a FRETILIN e os Partidos da AMP.
O governo Xanana reagiu aos atentados de uma forma pronta, criando o Comando Conjunto F-FDTL-PNTL e colocando estas duas Forças no encalço do grupo que passara a ser liderado pelo Gastão Salsinha. Não obstante a grande mobilização de homens, mulheres, armas e um grande aparato logístico, na verdade, a operação teve mais carácter político do que militar. Nenhum tiro foi disparado. Prevaleceu o diálogo e a capacidade de persuasão. Foi uma operação limpa e muito bem sucedida.
Ironicamente, o único Partido que modo formal e público apoiou a constituição do Comando Conjunto, embora sempre com a ressalva de se evitarem mais mortes, foi a FRETILIN.
Mas qual a razão desta operação só ter surgido após o atentado ao Presidente da República e a morte do Alfredo? Se tivesse acontecido mais cedo talvez o Alfredo estaria aindo hoje vivo e assim poder contribuir a encontrar a raiz política de toda a crise e ajudar a encontrar uma solução mais global e mais duradoira.
Se razão outra não existia, queremos crer que a raiz de todo o problema não ter sido resolvido mais cedo – diria mesmo quando o problema apareceu em 2006 – foi simplesmente porque havia conflito de posições dos diferentes órgãos de soberania do país em torno da questão, particularmente entre o Primeiro Ministro e o Presidente da República.
Quem governa no dia-a-dia sempre procura reafirmar a autoridade do Estado.Quem quer exercer o poder mas não governa, mas se opõe ao Governo, tudo procura encontrar para enfraquecer o Governo.
Deste modo, quando existe um Presidente que sistematicamente faz o papel de oposição ao Governo, em momentos decisivos de reafirmação da autoridade do Estado, normalmente surge o bloqueamento, abrindo caminhos para conflitos institucionais. E foi o que aconteceu em 2006. Em finais de 2007 e 2008, também se notavam diferenças de abordagem da questão entre o Presidente da República e o Primeiro Ministro de facto. E esta diferença crescia a olhos vistos. Mas de modo algum poderia chegar a abrir um conflito institucional. E o 11 de Fevereiro veio abrir caminhos para a diluição das diferenças de métodos na abordagem da questão.
O tempo de recuperação no Hospital de Darwin do PR permitiu ao Xanana assumir o Comando do país e avançar como se devia avançar na operação de encalço aos rebeldes. Este acto teria sido possível sem o trágico acontecimento de 11 de Fevereiro de 2008? Duvidamos. Só que o mistério de 11 de Fevereiro continua por se revelar. É possível algum dia sabermos a verdade? Na realidade Alfredo morreu. Grupos armados a desafiarem a autoridade do Estado não mais existem, pelo menos no activo. O que virá a seguir?
Morto Alfredo só restava capturar o grupo liderado por Gastão Salsinha e desmantelar os “peticionários”. Não foi difícil a operação de captura (misturada embora com actos inéditos de grande recepção do grupo no Palácio do Governo e de concessão aos mesmos de um estatuto de reclusos muito especiais). Alguns até já receberam grandes somas de dinheiro. O que está por detrás destes pagamentos? Estamos perante uma verdadeira teia de aranha de mistérios e mais mistérios.
O Parlamento Nacional aprova uma Resolução exigindo a constituição de uma Comissão Internacional de Investigação. O governo Xanana discorda e faz tábua raza da Resolução, desautoriza o Parlamento Nacional.
Compete agora a Justiça assumir a sua quota-parte do trabalho de encontrar a verdade material dos factos, julgar e decidir. Se o governo depois irá respeitar a decisão ou não, tudo dependerá. Se vier de encontro às suas expectativas, certamente que baterá palmas. Caso contrário, o mais certo é ignorar a decisão.
Em relação aos “peticionários” a realidade é bem diferente. A maior parte do grupo que, repentinamente, cresceu de quinhentos e noventa e três (593) para mais de setecentos, ainda mantinha no inicio, quando foram todos agrupados durante semanas em Ai-Tarak Laran, a exigência do retorno às F-FDTL. Colocados num campo guardado fortemente pelas Forças de Defesa e Segurança, limitados na sua movimentação para fora do campo, foram sendo influenciados no sentido de aceitar outras soluções e que abandonassem a sua exigência de regresso às Forças.
No fim, a solução foi, mais uma vez, pagar, compensar o trabalho por eles desenvolvido em 2006/07, trabalho que abriu caminho para a alternância governativa.
Para quem acha que em democracia tudo deve ser feito para se provocar a alternância governativa (se necessário usar da violência como arma política) e, mais ainda, para quem esteve a incentivar toda a crise em 2006/07 para mudar o Governo, deve(m) hoje estar convencido(s) que contribuíram de uma forma decisiva para a consolidação da democracia em Timor-Leste. Não me admirava nada que haja aqueles que assim pensam. Mas o que é feito do país? Democracia em Timor-Leste é hoje um conceito vazio de conteúdo e de valores, uma aberração política. Vivemos de uma fachada. O facto de ainda poder publicar artigos desta natureza pertence a esta fachada.
Mas voltemos a questão dos “peticionários”. Aqui ainda podemos levantar várias questões. Será que a solução encontrada é sólida? Os ”peticionários” abandonaram Aitarak Laran, cada um com mais de oito mil dólares nos bolsos. Durante um tempo limitado têm dinheiro para gastar. Mas, por quanto tempo mais?
Por outro lado, o que é feito do sentido de equidade e de justiça. Os que abandonaram os quartéis foram compensados. Que tipo de recompensa é dispensado aos soldados (praças, sargentos e oficiais) que se mantiveram nos quartéis? Esta forma de se resolver um problema tão grave não abrirá um precedente muito negativo para a disciplina nas Forças? Não digo que possamos voltar a assistir a um abandono dos quartéis por centenas de elementos das F-FDTL. Rezo para que isto nunca mais volte a acontecer. Mas refiro-me a questão de disciplina em geral. Em última análise soluções como aquelas que foram encontradas enfraquecem o Comando, debilitam o controle, ferem a coesão das Forças, reduzem a sua eficácia, etc.
E o que foi feito do sentido de justiça, valor mais sublime de um Estado de Direito Democrático? É sabido que elementos das Forças reponderam perante o Tribunal e alguns foram condenados e cumprem pena de prisão. Os principais comandantes das F-FDTL estão a responder perante à Justiça. Não existem aqui dois pesos e duas medidas no tratamento das questões relacionadas com a crise? A falta de equidade no tratamento desta questão em nada ajuda a garantir a consolidação da paz e da estabilidade. Tudo isso é grave demais para poder ser uma boa solução para um problema tão sensível. O país vive na incerteza, suspenso.
Mais especificamente em relação aos “peticionários” será que assumiram que a compensação financeira é a solução última e final para as suas reivindicações? Abandonaram todas as suas exigências? O que poderá acontecer quando o dinheiro acabar, as motos se avariarem, a família habituada a viver mais folgada a sentir de novo as exigências reais da vida no país real e a não poder resolver os seus problemas do dia a dia?
Esta é ainda a nossa maior preocupação. Não vemos na solução encontrada de compensação financeira algo de estruturante. Não vemos, nem política e nem programa que garantam aos “peticionários” uma reinserção integral na sociedade e que permita a sua participação no desenvolvimento de uma actividade económica e social sustentada. Por isso, não acreditamos que a solução abra caminho para a estabilidade pessoal e familiar, condição essencial para os beneficiários participarem activamente no processo de desenvolvimento da sua respectiva comunidade, núcleo incontornável para o desenvolvimento local, regional, distrital e nacional. Se pessoal e familiarmente não há estabilidade, então que tipo de solução é esta?
Obs: É verdade. Esqueci-me. A solução traz uma vantagem para o Xanana e o seu governo. Ajudou-os a executar o Orçamento, a combater o “carry over”. Talvez seja mais um acto de genialidade colectiva.
Fim da II parte